Angélica Fernandes: Quando a vida não vale o cumprimento de um inciso da lei
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Nos últimos dias, quatro mulheres foram vítimas de crime de femicídio, sendo que duas dessas mulheres foram assassinadas por agentes da segurança pública. São vítimas de femicídio, um crime cujo registro tem crescido, ou melhor, sua tipificação vem sendo empregada e as estatísticas começam a aparecer.
Elas morreram “por serem mulheres”. Em 2015, uma nova Lei passou a tipificar o femicídio como homicídio qualificado no qual a morte da vítima ocorre em razão de ser do sexo feminino, tudo inscrito no Código Penal, artigo 121, parágrafo 2º, inciso IV. O parágrafo 2º – A do mesmo artigo, o Código Penal elenca as situações que são consideradas como razões de condição do sexo feminino: violência doméstica e familiar, menosprezo à condição de mulher ou discriminação à condição de mulher.
Algumas questões chamam a atenção nesses dois casos ocorridos na cidade de São Paulo nos últimos dias: o primeiro é que as duas mulheres tinham sua trajetória vinculada à área do direito. A primeira vítima era juíza de direito, já a segunda era estudante de direito, com intenção de se tornar delegada.
A segunda questão que chama a atenção é o fato de os dois assassinos, agressores, serem agentes da segurança pública do estado de São Paulo. Em ambos os casos, os assassinos compõem os quadros da Polícia Civil e da Polícia Militar do Estado de São Paulo, sendo um delegado e outro cabo do Batalhão da Rota.
Chama ainda mais a atenção o fato desses agentes públicos serem responsáveis por garantir a aplicação das leis e normas presentes no atual ordenamento jurídico que, entre tantos, gostaria de destacar preceitos da Constituição Federal e a Lei Maria da Penha, em uma análise sistemática abordando conceitos sociológicos.
Para compreendermos os crimes é importante localizar a violência contra a mulher como a manifestação da desigualdade entre mulheres e homens. A violência contra a mulher está diretamente associada às relações desiguais entre gêneros. Fazemos referência a um conceito construído pelas Ciências Sociais nas últimas décadas para analisar a construção sócio-histórica das identidades masculina e feminina.
A teoria afirma que entre todos os elementos que constituem o sistema de gênero – também denominado “patriarcado” por algumas correntes de pesquisa – existem discursos que legitimam a ordem estabelecida, justificam a hierarquização dos homens e do masculino e das mulheres e do feminino em cada sociedade determinada. São sistemas de crenças que especificam o que é característico de um e de outro sexo e, a partir daí, determinam os direitos, os espaços, as atividades e as condutas próprias de cada sexo (Salzsman, 1992).
A tendência comum na sociedade é remeter a violência, em especial contra as mulheres, às determinações econômicas, embora seguramente elas permaneçam atuando como causas eficientes, tais como o desemprego e a pobreza como elementos que estão na origem dessa violência. Ambos os casos confirmam que as causas econômicas não foram a motivação.
A violência é composta por diferentes linhas de realização: apresenta uma visibilidade, por vezes de modo demonstrativo, sempre antecedida ou justificada, prévia ou posteriormente. A violência está na estrutura basilar de uma sociedade dividida, atingindo mais alguns grupos sociais do que outros. As práticas da violência vão se inserir em uma rede de dominações, de vários tipos – classe, gênero, etnia, por categoria social ou a violência simbólica (Silva, 2007).
No caso específico da violência sexista, esta é do tipo que se exerce unicamente contra as mulheres, pelo simples fato de serem mulheres. É uma das formas mais graves de discriminação em razão do sexo/gênero, que resulta na limitação da autonomia das mulheres, impedindo-as de tomar suas decisões livremente. Dessa forma, tem-se, recentemente, adotado o termo femicídio para os crimes caracterizados como ódio contra as mulheres.
É nesse complexo contexto que se estruturam as políticas públicas de segurança pública e sua efetivação, ou seja, em um contexto cultural objetivo de nossa sociedade baseada em preconceitos e discriminação racial, de sexismo e homofobia. Por essa razão, vários estudos apontam que a conduta dos agentes policiais não reconhece a violência doméstica e conjugal como um problema de segurança pública, e sim como problema da esfera privada.
O artigo 144 da Constituição Federal dispõe que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos agentes da segurança pública. Para garantir esse direito à segurança pública das mulheres, entre tantos outros pontos, podemos destacar o papel dos agentes da segurança no cumprimento das diferentes leis e normas que dispõem acerca da proteção dos direitos das mulheres, em especial as que são vítimas de violência ou vivem em condição de violência.
É nesse contexto que se inscreve a nova Lei do Femicídio e o conjunto dos dispositivos da Lei Maria da Penha que, vale sempre lembrar, como aquela que regulamenta o direito da mulher vítima de violência familiar e doméstica à assistência social, à saúde e à segurança pública. Seu arcabouço jurídico contém diversas ações afirmativas de caráter preventivo, assistencial e pedagógico, como também enuncia diretrizes para o cumprimento de políticas públicas através de ações sistêmicas de responsabilidade de cada ente federativo.
Ambas as iniciativas legais buscam desvelar a pretensa “neutralidade” do Estado, como propositor e articulador de interesses públicos, ao demandar alterações nas relações de poder e de acesso aos direitos em suas dimensões sociais e políticas. É na relação Estado-sociedade-mulher que se constata o verdadeiro caráter estatal.
A pretensão das ações propostas no âmbito dessa Lei tem por objetivo inserir nas ações do Estado iniciativas cujo objetivo reforce o combate aos problemas decorrentes de práticas assimétricas historicamente configuradas que permeiam o conjunto das políticas públicas e inviabilizam a construção da igualdade.
Uma política de segurança pública tradicional não tem espaço para atender vítimas de violência doméstica, pois não conta com pessoal preparado e com estratégias de ajuda efetiva às vítimas. Ainda mais em casos em que os agressores são distintos dos agressores estranhos, pois eles estão “dentro de casa”. Assim, mulheres estão desprotegidas, tanto na esfera privada como na pública.
No caso específico das duas mulheres ambas estavam desprotegidas no âmbito de seu lar, mesmo se relacionando com agentes de segurança. Uma delas inclusive tinha medida protetiva contra o criminoso, ou seja, a medida protetiva tem que ser cumprida pelo agressor e garantida pelos agentes das polícias. O que dizer nesse caso?
Para alguns resta a indignação e para outros cabe a adoção de medidas efetivas por parte do Estado, através de seus entes federativos, para garantir a vida das mulheres.
* Angélica Fernandes, Jornalista, Mestra em Ciências Sociais pela PUC-SP, Integrou a Equipe da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres do Governo Federal. Atualmente é Chefe de Gabinete do Conselheiro João Antonio no Tribunal de Contas do Município de São Paulo.
Artigo publicado originalmente no site da Escola de Contas do TCMSP